Sobre sensações, emoções e sentimentos: Uma contribuição para o embasamento teórico da Análise Transacional

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Trabalhar com Análise Transacional para a compreensão do evoluir humano em direção à autonomia tendo como orientação a filosofia, o método e a atitude terapêutica propostos por Eric Berne (Tudor, 2002) tem se mostrado um caminho envolvente cujos resultados na facilitação deste processo se tornaram evidentes ao longo de minha prática profissional como médica, psicoterapeuta, pesquisadora e educadora nos últimos trinta anos.

Este artigo tem como propósito repensar e ampliar o conhecimento sobre emoções e sentimentos a partir do diálogo entre Eric Berne, António Damásio e Humberto Maturana.

Para tal, é abordada a diferenciação entre emoção e sentimento desenvolvida por António Damásio (2004) em suas pesquisas na área da neurociência, relacionando aos conceitos de Estados de Ego e Emoções Naturais e Aprendidas , da Análise Transacional. O aspecto transacional da AT no que diz respeito a sua filosofia é revisto principalmente através da relação com a Biologia do Conhecimento, de Humberto Maturana com Francisco Varela (2005).

Por fim, é feita uma reflexão sobre a abrangência do trabalho do analista transacional identificado com a filosofia de Eric Berne enquanto interage com seus clientes buscando a ampliação de consciência e ação relacionadas ao mundo emocional que motiva, permeia e emerge desta interação.

PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS DA ANÁLISE TRANSACIONAL

A compreensão de que é possível curar pacientes psiquiátricos a partir do entendimento de que tais problemas tem solução, de que todos nós nascemos com capacidade para desenvolver nossos potenciais para sermos autônomos, ou seja, tornarmo-nos conscientes do que se passa em nosso interior quando nos encontramos com o meio externo, espontâneos em nossas ações e decisões e íntimos, transparentes e amorosos em nossos relacionamentos, são os princípios éticos fundamentais propostos por Eric Berne (1985;1977) e que permeiam sua teoria e seu método terapêutico.

Analistas transacionais tem se ocupado, nos últimos trinta anos, em refletir sobre a filosofia e o método da Análise Transacional (Steiner, 1974, 1975; Schlegel,1998; Barnes, 2007; Allen, 2009). Destacamos o trabalho de Keith Tudor (2002) por considerarmos que sistematiza princípios filosóficos, metodologia e postura terapêutica da Análise Transacional, como segue:

Filosofia básica: As pessoas são OK; todos tem capacidade de pensar; as pessoas decidem sobre seu próprio destino e estas decisões podem ser alteradas

Lemas terapêuticos: Primum non nocere – acima de tudo não causar dano (princípio da filosofia e da ética da não nocividade); Vis medicatrix naturae – a força curativa da natureza; Je le panse et Dieu le guérit – eu o trato e Deus o cura (definido por Berne como “preparando o paciente para que a cura aconteça hoje”)

Método terapêutico: Contratual (declaração mutuamente acordada de mudança); comunicação aberta

Postura terapêutica: um estado de espírito receptivo; boa saúde física e psicológica; bem preparado, claro, aberto

Claude Steiner, ao desenvolver a metodologia da Educação Emocional (1998), propõe a ampliação da consciência emocional através de interações que se inserem num paradigma de abundância de reconhecimento no qual o amor a si, ao outro e à verdade do que acontece na relação são os pilares de sustentação. Este paradigma, oposto ao paradigma da escassez de reconhecimento, promove a evolução do humano através das interações recorrentes que reconhecem o outro na convivência, de acordo com a Biologia do Conhecimento abordada por Maturana e Varela e imersa na filosofia da Análise Transacional.

EMOÇÕES E SENTIMENTOS

No que tange à teoria das emoções, na literatura analítica transacional, a terminologia encontrada refere-se ao termo “sentimento” ao invés de “emoção” (Nábrády, 2005), diferenciando entre sentimentos autênticos e sentimentos de disfarce. Por vezes há referência a sentimentos e emoções como sinônimos, referindo então cinco emoções básicas, também nominadas naturais, primárias ou autênticas: medo, raiva, tristeza, alegria e afeto com suas variantes da simpatia à paixão (Roman,1983;Solis,1988).

Em nosso viver, quando nos encontramos em situações emocionalmente fortes, somos, em geral, invadidos pela produção de tantas substâncias e sensações físicas que corremos o risco de mergulhar nelas sem a consciência de que podemos vivenciá-las como nossas aliadas (Steiner,1998), sejam elas prazerosas ou não. Muitas vezes elas podem nos parecer estranhas, como se não fossem nossas, como se tivéssemos sido acometidos de um mal ou bem súbito que vem e vai autonomamente.

As emoções e os sentimentos permeiam a história humana, sendo centrais nas comédias e tragédias gregas, na obra de filósofos como Aristóteles e na primeira compilação escrita, a Bíblia.

No meio científico, a primeira grande contribuição ao estudo das emoções foi a de Charles Darwin (2000) em 1872, através do livro “A expressão das emoções no homem e nos animais”, no qual desenvolveu uma série de análises a partir do relato de observadores das expressões em seres humanos e animais, inaugurando o estudo dos aspectos biológicos do comportamento.

No campo da psicologia, William James, na segunda metade do século XIX, foi motivo de controvérsias ao inverter a ordem do pensar no senso comum da época. Afirmou que as emoções se produziriam a partir de estados corporais, ao invés de serem a consequência de um estado mental. Para ele, a modificação corporal ocorreria antes da consciência da emoção propriamente dita, o que tem sido corroborado por estudos atuais (Damásio, 2002).

Desde aquele momento, teorias tem enfatizado o aspecto biológico, os aspectos sociais e evolutivos e os aspectos cognitivos das emoções.

A ÁRVORE DE DAMÁSIO

António Damásio (2004) destaca-se na atualidade através de estudos no campo da neurociência, abordando a precedência da emoção sobre o sentimento. Na evolução biológica, primeiro surgiram as emoções e depois os sentimentos. O pesquisador fala-nos de uma cadeia complexa que inicia nas emoções e termina nos sentimentos. Argumenta, através das conclusões de suas pesquisas, que as emoções são públicas( reveladas no rosto, na voz ou em comportamentos específicos) e os sentimentos são privados (são invisíveis para o outro, como são também outras imagens mentais). Segundo ele, todo o organismo vivo, da ameba ao ser humano, nasce com o suficiente para solucionar os problemas básicos da vida, que são: encontrar fontes de nutrição, incorporar e transformar esta nutrição, manter um equilíbrio químico compatível com a vida, substituir componentes que envelhecem e morrem, mantendo a estrutura do organismo e defendendo-o de lesão física. Isto acontece automaticamente, sem raciocínio anterior e se constitui na homeostasia.

Ao longo da evolução biológica, este equipamento tornou-se sofisticado, mas, na sua base, estão respostas simples como a de aproximação ou de retraimento de um organismo em relação a um objeto. Nos níveis mais complexos, estão as respostas competitivas ou de cooperação.

Damásio propõe imaginar a máquina da homeostasia como uma árvore alta e larga, na qual os ramos são os fenômenos automáticos de regulação da vida. Nos ramos mais baixos estão os processos de metabolismo que mantém o equilíbrio químico interior, organizando o ritmo cardíaco, pressão arterial, o armazenamento e distribuição de proteínas, lipídeos e carboidratos que abastecem o organismo de energia necessária para manter e renovar a sua estrutura. Nestes ramos estão também os reflexos básicos como o de alarme profundamente estudado por Hans Selye, sob o título de “Síndrome de Adaptação Geral”, em 1956, e os tropismos que levam o organismo a escolher a luz e evitar frio e calor extremos. Também aí está o sistema imunológico que defende o organismo de ameaças que vem de dentro ou de fora.

Nos ramos médios estão os comportamentos associados à noção de prazer e dor, incluindo as reações de aproximação e retraimento, como o retraimento que acontece no corpo ou em uma parte do corpo diante de uma queimadura. Acontece, então, uma série de ações a fim de restabelecer o equilíbrio biológico do corpo. Este conjunto de ações e sinais químicos relacionados resulta na experiência da dor. Quando o corpo funciona bem e a transformação da energia é fácil, há uma descontração e abertura do corpo, e expressões de confiança e bem-estar com a liberação de endorfina, por exemplo, o que resulta na experiência de prazer. Damásio explicita este funcionamento como automático e presente também em seres de pouca complexidade como é o caso do paramécio.

Um pouco mais acima, na árvore, estão algumas pulsões e motivações, como fome, sede, curiosidade, comportamentos exploratórios, lúdicos e sexuais. Este autor designa por apetite o estado comportamental de um organismo afetado por uma pulsão, e de desejo, o sentimento consciente de um apetite, incluindo a satisfação ou frustração deste.

Próximo ao cume, Damásio relaciona as emoções propriamente ditas, que considera as jóias da regulação automática da vida. As emoções propriamente ditas influenciam os apetites e vice-versa. O medo e também a tristeza e o nojo, inibem a fome e a atividade sexual. A alegria promove a fome e a atividade sexual. A satisfação das pulsões causa alegria e o bloqueio da satisfação das pulsões pode causar raiva, desespero e tristeza. Para o autor, todas essas reações são automáticas, tendo como fim, de forma direta ou indireta, regular a vida e promover a sobrevida. Segundo ele, esse arranjo se mantém mesmo no nível das emoções propriamente ditas, diferindo na complexidade da avaliação e da resposta, que são maiores do que nas reações simples a partir das quais as emoções foram construídas ao longo da evolução biológica. Este é o esforço implacável de autopreservação presente em qualquer ser vivo, a luta contra ameaças, pela manutenção da coerência de suas estruturas e funções, de modo a manter-se o mesmo indivíduo. Este mecanismo é referido por Maturana e Varela como a autopoiese.

Então, para Damásio, os diversos níveis da emoção estão construídos com base no mesmo princípio. A este nível da árvore de Damásio podemos relacionar a origem das emoções autênticas ou naturais, também conhecidas como primárias, mencionadas pelos referidos analistas transacionais. Nesta relação podemos considerar as emoções primárias como mecanismos biocibernéticos de regulação dos instintos cujo propósito último é a sobrevivência e o bem-estar (Solis, 1988). A esta compreensão sobre emoções primárias tanto entre os analistas transacionais como na explanação feita por Damásio, falta o aspecto evolucionário, que será abordado adiante a partir da relação com a Biologia do Conhecimento desenvolvida por Maturana e Varela (2005).

De acordo com as pesquisas de Damásio, o genoma garante que estes dispositivos estejam ativos no momento do nascimento ou pouco depois, sem depender da aprendizagem, embora esta desempenhe importante papel na determinação das ocasiões em que estes dispositivos serão usados.

Agora, o que é fundamental para esta reflexão é a classificação que o autor faz para as emoções propriamente ditas: emoções de fundo, emoções primárias e emoções sociais.

Emoções de fundo – seu diagnóstico depende de manifestações sutis como a frequência, precisão e amplitude de movimentos dos membros e do corpo e

de expressões faciais, assim como a cadência do discurso e a música da voz. Distinguem-se do humor, segundo Damásio, pois este se refere a emoções mantidas por longos períodos, como horas ou dias. O humor pode ser também a ativação repetida da mesma emoção. Para o autor, as emoções de fundo são o resultado imprevisível do desencadeamento simultâneo daqueles processos regulatórios que incluem ajustamentos metabólicos e reações que ocorrem continuamente como resposta a situações exteriores. Disso depende nosso bem-estar ou mal-estar.

As emoções primárias incluem medo, raiva, nojo, surpresa, tristeza, felicidade, ou seja, aquilo que vem em nossa idéia quando pensamos “emoção”. Estas são imediatamente identificadas em seres humanos de diversas culturas e em seres não humanos. Damásio coloca que a maior parte do que sabemos sobre a neurobiologia das emoções refere-se às emoções primárias.

As emoções sociais incluem simpatia, compaixão, embaraço, vergonha, culpa, orgulho, ciúme, inveja, gratidão, admiração, espanto, indignação, desprezo. Reações regulatórias e componentes das emoções primárias são parte integrante das emoções sociais. Ingredientes de dor e prazer são também evidentes na profundidade das emoções sociais. As emoções sociais também não são exclusivas dos seres humanos. Estão presentes em chimpanzés, golfinhos, lobos, cães e gatos, para citar alguns. O arranjo cerebral que permite tais comportamentos sofisticados, na ausência de linguagem ou instrumentos de cultura, é, para Damásio, um dom do genoma de certas espécies, que faz parte dos dispositivos inatos da regulação automática da vida. Além das emoções sociais inatas, existe uma outra classe de reações cuja origem não é consciente e que é formada pela aprendizagem durante o desenvolvimento individual: aquilo que aprendemos a gostar ou passamos a detestar. As reações inatas e aquelas aprendidas parecem inter-relacionar-se intimamente no poço sem fundo do nosso inconsciente.

No nível das emoções sociais referidas por Damásio, sobretudo no que tange à aprendizagem podemos situar a teoria dos Disfarces (Racket Feelings) abordadas na Análise Transacional (Berne,1988; English, 2010; Erskine, 2010; White, 1996), A compreensão que Fanita English (2010) traz para Disfarces é apropriada a esta relação: “Disfarces são repetições estereotipadas de sentimentos permitidos que foram reconhecidos no passado. São expressos sempre que um sentimento real está a ponto de emergir” (English, 2010, p.90).

A hipótese de Damásio sobre o que são as emoções está resumida nos itens:

  1. Uma emoção propriamente dita é uma coleção de respostas químicas e neurais que formam um padrão distinto.
  2. As respostas são produzidas quando o cérebro normal detecta um estímulo-emocional-competente (um EEC), o objeto ou acontecimento cuja presença real ou relembrada desencadeia a emoção. As respostas são automáticas.
  3. O cérebro está preparado pela evolução para responder a certos EEC com repertórios de ação específicos. Mas a lista dos EEC não se limita àqueles que foram prescritos pela evolução. Inclui muitos outros adquiridos pela experiência individual.
  4. O resultado imediato destas respostas é uma alteração temporária do estado do corpo e do estado das estruturas cerebrais que mapeiam o corpo e sustentam o pensamento.
  5. O resultado final das respostas é a colocação do organismo, direta ou indiretamente, em circunstâncias que levam à sobrevida e ao bem-estar.

(Damásio, 2004, p.610)

A maior parte do que nos rodeia é capaz de desencadear emoções, fortes ou fracas, boas ou más, conscientemente ou não, sendo nominada como um Estímulo Emocional Competente (EEC). Alguns são EEC por razões evolucionárias enquanto outros transformam-se em EEC a partir de nossa experiência individual ao longo do processo de socialização.

Na árvore de Damásio, a profusão de ramos que se entrecruzam em vários níveis, mantém uma ligação com o tronco principal e com as raízes.

Na ponta dos diversos ramos do cume da árvore estão localizados os sentimentos.

Atualmente várias regiões cerebrais estão identificadas como envolvidas ou desencadeadoras de emoção, como a amígdala, situada no lobo temporal, uma parte do lobo frontal nominada córtex pré-frontal ventromedial e uma região frontal no córtex do cíngulo. Estas regiões entram em ação em consequência de sinais naturais ou com estímulos artificiais como corrente elétrica aplicada ao tecido celular.

O estudo da amígdala em animais tem trazido dados sobre a emoção, graças ao trabalho de Joseph LeDoux (2001). O estudo da amígdala humana através de imagens sugere que a amígdala é uma interface importante entre EEC visuais e auditivos e o desencadeamento das emoções como raiva e medo. Pessoas com lesões da amígdala não conseguem desencadear o medo ou a raiva e consequentemente, não tem os sentimentos que lhes correspondem. Por outro lado, a amígdala normal entra em ação mesmo quando não temos consciência de ter visto uma imagem ameaçadora.

Em qualquer emoção, as ondas múltiplas de respostas químicas e neurais alteram o meio interior, o estado das vísceras e o estado dos músculos durante um certo período com um certo perfil. A emoção é uma perturbação do corpo que se espalha e se amplifica. Essa extensão e amplificação acontecem, de acordo com essas pesquisas, porque a presença de um EEC inicial leva frequentemente à recordação de estímulos relacionados que são também EEC. Com o passar do tempo, estes EEC adicionais podem levar ao desencadeamento da mesma emoção ou ao desencadeamento de modificações dessa emoção, ou mesmo induzir emoções que colidem com a original. Este parece ser o mecanismo de formação dos Disfarces. Em relação ao estímulo inicial, a continuação e a intensidade do estado emocional estão à mercê do desenrolar do processo cognitivo.

O fluxo de conteúdos mentais provoca respostas emocionais, que ocorrem no domínio do corpo ou dos seus mapas cerebrais e que, por fim, conduzem aos sentimentos.

Interessante é o relato sobre uma paciente de 65 anos que teve, para tratamento de Parkinson, uma estimulação elétrica dirigida a uma parte específica do tronco cerebral, o mesencéfalo e, de repente, suspendeu a conversa que estava tendo, inclinou-se à direita e sua expressão facial transformou-se em uma máscara de tristeza. Alguns segundos mais tarde começou a chorar e seu comportamento revelava um pesar profundo. Um pouco mais tarde começou a falar, confessando grande tristeza, exaustão, desespero. Suspeitando que fosse pela estimulação elétrica, o médico suspendeu-a. Cerca de noventa segundos depois de a corrente ser interrompida, o comportamento regressou ao normal. Os soluços pararam, o pesar desapareceu e os relatos de tristeza terminaram. Em tom de brincadeira, perguntou o que estava acontecendo, pois sentira-se mal mas não sabia por que. Depois da tristeza estar em curso é que ela começou a ter o sentimento de tristeza. E somente depois do sentimento, começou a ter pensamentos sintônicos com a tristeza. Em uma experiência semelhante, diante de estimulação elétrica da área suplementar motora do lobo frontal esquerdo, foi provocado o riso, de forma consistente e exclusiva, descrito pelos pesquisadores como contagioso. O riso fez-se seguir de uma sensação de divertimento e alegria, sem justificativa para tais sentimentos. A paciente atribuía a causa do riso a qualquer objeto para o qual estivesse olhando. Ao considerar os dois casos em conjunto, conseguimos entrever as diversas camadas da estrutura neural responsável pelas emoções.

Certos pensamentos evocam certas emoções e certas emoções evocam certos pensamentos. Os planos cognitivos e emocionais estão constantemente ligados por essas interações. Mesmo quando as expressões emocionais não tem motivação psicológica e são “representadas”, elas são capazes de causar sentimentos e de provocar o tipo de pensamentos que, um dia, foram aprendidos em conjunto com essas emoções, conforme mostram pesquisas de Paul Ekman (1973).

Para Damásio, os sentimentos abrem a porta para uma nova possibilidade: o controle voluntário daquilo que até então era automático. Este é o espaço no qual o relacional possibilita transformação.

A evolução parece ter construído a estrutura da emoção e sentimento a prestações. Construiu primeiro os mecanismos para a produção de reações a objetos e circunstâncias – a estrutura da emoção. Construiu depois os mecanismos para a produção de mapas cerebrais que representam essas reações e os seus resultados – a estrutura do sentimento…No princípio foi a emoção, claro, e no princípio da emoção esteve a ação.

(Damásio, 2004, p. 88)

Os sentimentos, para Damásio, emergem das mais variadas reações homeostáticas, não somente das reações a que chamamos emoções no sentido estrito do termo. Um sentimento é uma percepção de um certo estado do corpo, acompanhado pela percepção de pensamentos com certos temas e pela percepção de um certo modo de pensar. Os sentimentos de emoções são funcionalmente distintos porque a sua essência consiste em pensamentos sobre o corpo surpreendido no ato de reagir a certos objetos e situações. Quando se remove essa essência corporal, a noção de sentimentos desaparece. Então, não é mais possível dizer “sinto-me feliz” e sim “penso-me feliz”.

O produto mental a que chamamos sentimento resulta da cooperação estreita dos diversos mapas do estado corporal colocados em diversas regiões cerebrais, desde o tronco cerebral até o córtex cerebral. Os sentimentos são percepções interativas dentro do corpo.

Os sentimentos não tem origem necessariamente no estado real do corpo mas no estado real dos mapas cerebrais que as regiões somatossensitivas constróem em cada momento.

Se considerarmos, com James Allen (1999, 2009) um Estado de Ego como uma rede particular de neurônios ativada, um perfil de ativação de determinada rede neural que inclui modos específicos de processamento   de informação ativada e também o que estes neurônios estão processando, fica evidente que cada um destes módulos tem regras específicas e problemas particulares que procura resolver, o que inclui um perfil específico de sensações, emoções e sentimentos para cada rede.

Para James Allen (1999,2000) a construção dos Estados de Ego depende do ambiente e Estados de Ego são co-construídos interpessoalmente.

De acordo com a visão de James Allen, a experiência interpessoal altera a estrutura do cérebro e as conexões entre os neurônios, modelando desta forma os processos mentais.

Segundo este autor, a riqueza plástica do Sistema Nervoso deve-se à sua contínua transformação, que permanece congruente com as transformações do meio, como resultado de cada interação que o afeta.

MATURANA E AS EMOÇÕES

Desde 1970, Humberto Maturana tem trabalhado com o desenvolvimento do que chamou de “Biologia do Conhecimento”, assim como nas implicações da teoria da autopoiese em diferentes âmbitos da fenomenologia biológica, em particular no antropológico social, na origem do humano, e a evolução biológica. O central no desenvolvimento de seu pensar tem sido a afirmação de que nós, seres vivos, existimos em dois domínios operacionais: o da dinâmica estrutural interna, onde se realiza a autopoiese, e o da dinâmica relacional, que é onde existimos propriamente como seres vivos na realização de nosso viver como as diferentes classes de seres vivos que somos. Seu desenvolvimento conceitual posterior relaciona-se ao que denomina “Biologia do Amor”, abordando que as emoções ocorrem no espaço relacional do organismo como classes de condutas relacionais.

Para Maturana e Varela (2005), os seres vivos se caracterizam por, literalmente, produzirem de modo contínuo a si próprios. Seres vivos diferentes se distinguem porque tem estruturas distintas mas são iguais em organização. Os seres vivos são unidades autônomas. Um sistema é autônomo se é capaz de especificar sua própria legalidade, aquilo que lhe é próprio. A organização dos seres vivos é tal que seu único produto são eles mesmos. Não há, então, separação entre produtor e produto. O ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis e isso constitui seu modo específico de organização.

É possível relacionar o que os autores referem como organização ao que Damásio chama a manutenção da estrutura do organismo, embora fazendo supor menos movimento evolucionário interativo do que entende-se na organização autopoiética. Os componentes moleculares de uma unidade autopoiética celular estão dinamicamente relacionados numa rede contínua de interações. As transformações químicas concretas dessa rede constituem o metabolismo celular. Esse metabolismo produz componentes que integram a rede de transformações que os produzem. Alguns formam uma fronteira, um limite para essa rede de transformações. Em termos morfológicos, esta fronteira é como uma membrana. Essa membrana não apenas limita a extensão da rede de transformações que produz seus componentes, como também participa dela. Tratam-se de dois aspectos de um fenômeno unitário.

Ontogenia, segundo os autores, é a história de mudanças estruturais de uma unidade, sem que esta perca a sua organização. Maturana e Varela argumentam que enquanto uma unidade não entrar numa interação destrutiva com o seu meio, nós, observadores, veremos que entre a estrutura do meio e a da unidade há um compatibilidade ou comensurabilidade. Enquanto isto existir, meio e unidade atuarão como fontes de perturbações mútuas e desencadearão mutuamente mudanças de estado. A esse processo continuado intitulam acoplamento estrutural.

Um aspecto interessante da evolução é a maneira como a coerência interna de um grupo de seres vivos compensa uma determinada perturbação. Para estes autores, do mesmo modo, sem obedecer a outra lei que não a da conservação da identidade e da capacidade de reprodução, surgimos todos nós. Com ou sem sistema nervoso, o ser vivo funciona sempre em seu presente estrutural. O passado é referência de interações já ocorridas, e o futuro, referência de interações a ocorrer. No entanto, não fazem parte do funcionamento do determinismo estrutural do organismo a cada momento. Dotados ou não de sistema nervoso, todos os organismos, inclusive nós mesmos, funcionam como funcionam e estão onde estão a cada instante, como resultado de seu acoplamento estrutural.

Relatam como ilustração de seu entendimento o caso das duas meninas indianas que foram encontradas com lobos que as haviam criado isoladas de contato humano, em 1922. Tinham oito e cinco anos e estavam sadias ao serem resgatadas. Por mais que sua constituição genética, anatomia e fisiologia fossem humanas (organização autopoiética), não se acoplaram ao contexto humano. Uma delas não sobreviveu e a outra, que sobreviveu por dez anos, jamais chegou a falar e, embora tivesse aprendido a ficar sobre os dois pés, em situações urgentes, corria de quatro. Então, não havendo acoplamento estrutural, sua organização se desfez.

Conforme referem os autores, o sistema nervoso funciona como uma rede fechada de mudanças de relações de atividade entre seus componentes (clausura operacional). Podemos relacionar esta clausura operacional assim como a história de interações que constituem perturbações à descrição de Eric Berne sobre o destino humano, quando diz:

O destino de todo ser humano é decidido pelo que se passa dentro de sua cabeça quando confrontado com o que acontece fora dela. Cada pessoa traça sua própria vida. A liberdade confere-lhe o poder de realizar os seus próprios desígnios e o poder dá-lhe a liberdade de interferir nos desígnios dos outros.

(Eric Berne, 1988, p.41)

Para que haja história de interações recorrentes, há uma emoção que constitui as condutas que resultam em interações recorrentes. Se esta emoção não se dá, não há história de interações recorrentes, mas somente encontros casuais e separações. Existem duas emoções pré-verbais que tornam isto possível. São elas: a rejeição e o amor. A rejeição constitui o espaço de condutas que negam o outro como legítimo outro na convivência. O amor constitui espaço de condutas que aceitam o outro como um legítimo outro na convivência. A rejeição e o amor, no entanto, não são opostos porque a ausência de um não leva ao outro, e ambos tem como seu oposto a indiferença. Rejeição e amor, no entanto, são opostos em suas conseqüências no âmbito da convivência: a rejeição a nega e o amor a constitui. A rejeição constitui um espaço de interações recorrentes que culmina com a separação. O amor constitui um espaço de interações recorrentes que se amplia e pode estabilizar-se como tal. Sem a aceitação do outro na convivência, não há acoplamento estrutural, não há fenômeno social.

É por isto que o amor é a emoção fundamental na história da linhagem humana a que pertencemos. Aqui, como em Análise Transacional, o amor assume o seu espaço enquanto emoção básica, o mecanismo biocibernético de regulação de nossos instintos com o propósito de sobrevivência, bem estar e evolução. Para os autores, somos como somos em congruência com o nosso meio e nosso meio é como é em congruência conosco e, quando essa congruência se perde, não somos mais.

O amor é a emoção central na história evolutiva humana desde o início e toda ela se dá como uma história em que a conservação de um modo de vida no qual o amor, a aceitação do outro como um legítimo outro na convivência é uma condição necessária para o desenvolvimento físico, comportamental, psíquico, social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde física, comportamental, psíquica, social e espiritual do adulto. Num sentido estrito, nós seres humanos nos originamos no amor e somos dependentes dele. Na vida humana a maior parte do sofrimento vem da negação do amor: os seres humanos somos filhos do amor.

(Maturana, 2005, p.25)

Estas emoções parecem relacionar-se aos mecanismos de aproximação e retraimento referidos por Damásio nos ramos médios da árvore.

É também possível relacionar à forma de interação curadora que estimula   consciência, espontaneidade e intimidade – autonomia em Análise Transacional.

Então, para Maturana, o amor nos pertence como característica biológica que constitui o humano. A maior parte das enfermidades humanas surgem na negação do amor. Adoecemos se não nos querem, se nos rejeitam, se nos negam ou se nos criticam de uma maneira que nos parece injusta. Podemos até mesmo adoecer de câncer, porque a dinâmica fisiológica tem a ver com a dinâmica emocional. (Maturana, 2005)

Nosso sistema imunológico já está contido em nossa primeira célula.

Robert Ader (2007), psicólogo experimental que se dedicou ao caráter psicossomático das doenças, refere que a doença não se deve a um único fator fisiológico ou psicológico, mas é psicossomática e surge de uma variedade de circunstâncias. Este pesquisador concluiu que o sistema imunológico não era uma unidade inviolável, auto-reguladora e autônoma dentro do corpo, mas um sistema que acolhia as mensagens da mente. Publicou, em 1981, o livro “Psiconeuroimunologia”, no qual expõe as investigações que revelam a capacidade do sistema nervoso central para afetar o sistema imunológico e a saúde do corpo.

PERT(1997), foi precursora na apresentação de trabalhos sobre neuropeptídeos, que são minúsculas cadeias de aminoácidos decisivas para nossas experiências emocionais. Estes foram identificados pela primeira vez no cérebro e, conforme o trabalho da autora demonstra, são também “partículas de cérebro” que flutuam por todo o corpo, levando a mensagem do sistema nervoso central. Este sistema está constantemente veiculando pensamentos que condicionam o funcionamento do cérebro que, por sua vez, envia mensagens através dos neuropeptídeos aos vários sistemas, inclusive o sistema imunológico.

Paul Pearsall, psicólogo especializado em psiconeuroimunologia, também estudou a relação entre o cérebro, o sistema imunológico e as experiências do mundo exterior, publicando, em 1999, o livro “Memória das Células”. Trabalhando com pacientes transplantados e suas famílias, evidenciou em suas pesquisas um tipo de memória celular e o importante papel que o coração desempenha na recuperação desta memória. Ele afirma que nossa capacidade de amar e disposição para dar amor é pelo menos tão importante, se não mais importante do que o quanto somos amados (Pearsall, 1999).

ERIC BERNE E OS ESTADOS DO EGO

Eric Berne define Estados de Ego como sistemas coerentes de pensamento e sentimento manifestados por padrões de comportamento correspondentes (Berne, 1988).

Para ele, a análise estrutural, primeira etapa num processo terapêutico, consiste em clarificar e fortalecer as fronteiras entre Estados do Ego neopsíquico (Adulto), exteropsíquico (Pai) e arqueopsíquico (Criança) com a consequente reintegração destas influências na mente do paciente sob o comando de um Estado de Ego Adulto descontaminado que se torna, então, o executivo de uma forma de vida saudável e um aliado no processo terapêutico subsequente (Berne, 1977).

A compreensão da dinâmica intrapsíquica em Berne pode ser exemplificada no seguinte parágrafo:

Cada Estado do Ego é um tipo de entidade diferenciada, de alguma forma, do resto dos conteúdos psíquicos, inclusive de outros Estados do Ego que existiram há muitos anos ou há poucos momentos, ou que estão simultaneamente ativos. A maneira mais conveniente e provavelmente mais correta de se dizer isto é falar de cada Estado do Ego como possuidor de uma fronteira que o separa de outros Estados do Ego.

(Berne, 1961, p. 37)

É possível relacionar esta compreensão à cadeia complexa descrita por Damásio (2004) e às redes neurais referidas por James Allen (2000), propondo entender Estados de Ego como redes neurais específicas nas quais sensações, emoções, sentimentos, experiências e comportamentos relacionados são co-construídos interpessoalmente na evolução humana.

Berne cita:

Por ser cada pessoa o produto de um milhão de momentos diferentes, de mil estados de espírito, de cem aventuras e, em geral, de dois progenitores diversos, uma investigação minuciosa de sua posição revelará muita complexidade e contradições aparentes.

(Berne, 1988, p.83)

É possível também relacionar esta compreensão à Ontogenia de Maturana e Varela, a “história de transformações de uma unidade, como resultado de uma história de interações, a partir de sua estrutura inicial” (Maturana e Varela, 2005, p.277)

Para Berne, as sociedades são organizadas de tal modo que encorajam a falta de autonomia através do contrato social transacional, que diz: “Você aceita minha “persona” ou auto-representação e eu aceitarei a sua”. O resultado é uma falta de confrontação: confrontação com os outros e consigo mesmo. “Dizer Olá corretamente é ver a outra pessoa, ter consciência dela como um fenômeno, acontecer para o outro e estar pronto para que o outro aconteça para você”.(Berne, 1988, p. 19)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Análise Transacional de Eric Berne imersa em sua orientação filosófica nos faz conhecer e valorar a importância da relação transparente, cooperativa e de confiança e respeito pela natureza humana para a superação de conflitos intra e interpessoais. Ao definir Análise Transacional como uma teoria da personalidade e de ação social e um método clínico de psicoterapia, sob os pressupostos citados neste artigo e tendo como conceitos centrais os conceitos de Estados de Ego, de Transações e de Script de Vida, Berne contempla a possibilidade de caminharmos do fisiológico ao relacional, do individual ao social de forma semelhante ao entendido na Biologia do Conhecimento e do Amor de Maturana para a compreensão do humano em sua multiplicidade.

Damásio, ao trazer a compreensão das sensações e emoções no domínio do público, o que aparece mesmo quando não sabemos que aparece, e dos sentimentos no domínio do privado, que se faz na multiplicidade de redes neurais que nos constituem ao longo de nosso processo de interações, embora não explicite a dimensão de evolução, brinda-nos com   uma importante informação quando traçamos um paralelo com a possibilidade das interações no domínio da emoção do amor como fundamental na evolução humana. Oferece-nos também bases biológicas para a compreensão das redes de Estados de Ego e das emoções primárias citadas na linguagem transacional. Acrescentar o nível das sensações à definição de Estados de Ego como redes neurais amplia a compreensão relacional sistêmica na qual estamos inseridos.

Enquanto nos alienamos emocionalmente, estamos diminuindo nossas possibilidades de defesa imunológica, de cura e de elevação de nossa qualidade de vida, além de nossa evolução na rede de interações humanas.

Relacionar a árvore das emoções de Damásio às características das Emoções Primárias e dos Disfarces considerando a adequação em intensidade, qualidade e duração ao estímulo que as provoca (EEC) parece constituir um interessante enfoque para estudos posteriores.

O propósito deste artigo foi contribuir, através do diálogo entre Eric Berne, António Damásio e Humberto Maturana, para o entendimento do universo dos sentimentos humanos e sua importância na evolução do indivíduo e da espécie.

Para acesso as referências, envie-nos uma mensagem: sintese@sintese-at.com.br

Publicação in:

COSTA, Jane M. P. Sobre sensações, emoções e sentimentos: uma contribuição para o embasamento teórico da Análise transacional. REBAT – Revista Brasileira de Análise Transacional, Porto Alegre, ano 21, nº1, abril, 2011.

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